OS REIS DO VINIL

(canção portuguesa de 1958 até 64)

 

O Festival de Aranda do Douro (1960-62)

por João Manuel Mimoso

Este texto é apenas uma nota à margem. Na verdade não é objectivo tratar dos festivais espanhóis, mas no período em causa os artistas referiam-se frequentemente ao Festival da Canção Hispano-Portuguesa (vulgo Festival de Aranda do Douro) como se fosse quase nacional.

O Festival de Aranda surgiu no rasto do sucesso do Festival de Benidorm (que era um festival da canção espanhola) e como artifício diferenciador lembraram-se os promotores de o fazer luso-castelhano, com canções em ambas as línguas tendo como ténue justificação o facto de Aranda se situar no Alto Douro espanhol (na Província de Burgos) e o rio atravessar ambos os países.

O I Festival teve lugar em Setembro de 1960 e nele se apresentaram 19 canções inéditas das quais duas eram portuguesas: "O meu rio Douro" de Vitorino de Sousa e Santos Rosa, que foi a vencedora do Festival tendo a sua intérprete, a cançonetista brasileira Maria Helena, ganho o prémio de interpretação; e "Canção ao Porto" de Artur Ribeiro e Jaime Filipe, interpretada por Artur Ribeiro, que foi a terceira classificada.

Apesar deste excelente resultado o Festival despertou pouco interesse na imprensa nacional ao ponto de, por vezes, parecer que há qualquer segredo que não convém revelar... o problema residia, como é fácil adivinhar, na utilização de uma brasileira como intérprete de uma canção portuguesa que os media da época, muitas vezes tacanhos, consideraram insultuoso para o meio artístico nacional. Curiosamente "O meu rio Douro", canção de ritmo folclórico muito bem conseguida, foi não só a melhor deste 1º Festival como, provavelmente, a melhor de todos os festivais de Aranda, tendo-se tornado uma espécie de hino do Festival que viria a ser um dos mais importantes entre os muitos que nos anos 60 se realizavam em Espanha.

   
 

O II Festival teve lugar nas três noites entre 8 e 10 de Setembro de 1961 incluindo 15 canções espanholas e cinco portuguesas, com transmissão directa da final pelo Rádio Clube Português que colaborava na organização, e que talvez considerasse este como "o seu festival", por contrapartida com o Festival da Canção Portuguesa, que era da Emissora Nacional.

A representação portuguesa foi assegurada pelos cançonetistas Maria Amélia Canossa e Artur Ribeiro mas não foi conseguida qualquer classificação de relevo- o melhor lugar obtido foi o sexto com "O Douro canta" por Artur Ribeiro.

Na sequência deste II Festival, Artur Ribeiro manifestou-se indisponível para participar no seguinte por discordar das classificações. Na verdade o júri tinha apenas um elemento português e o problema é o de sempre: apesar dos falantes de português compreenderem o espanhol sem problemas, o contrário não acontece (este facto está relacionado com os sons vocálicos das duas linguas e não é de maneira nenhuma único- os falantes do norueguês, por exemplo, entendem com muito mais facilidade o idioma sueco do que o contrário). Assim, por muito justos que sejam- e não há razões para crer que o não tentassem ser- a sua situação é semelhante à de um jurado português num festival em que canções portuguesas concorressem com canções gregas...

   
 

Apesar de tudo, o prestígio do evento foi crescendo e ao 3º Festival concorreram cerca de 550 composições, das quais uma centena oriundas de Portugal. Destas foram seleccionadas para a final doze espanholas e oito portuguesas que foram interpretadas por Maria do Espírito Santo, João Maria Tudela e Artur Garcia.

O Festival realizou-se em Setembro de 1962 e a "Canção do Douro" interpretada por Maria do Espírito Santo alcançou a melhor classificação portuguesa (o terceiro lugar)- uma excelente canção mas demasiado parecida com a que vencera em 1960.

Depois do Festival estalaram as polémicas fúteis do costume (incluindo, imagine-se, por a intérprete da canção vencedora ser italiana!!!). Uma destas polémicas tinha a ver com os intérpretes portugueses... é que inicialmente estavam previstos ir António Calvário, João Maria Tudela e Gina Maria, que já tinham gravado as composições para a Valentim de Carvalho, mas António Calvário e Gina Maria tiveram inesperadamente que partir para África para uma série de espectáculos integrados no esforço militar, tendo sido substituídos à última hora com prejuízo para algumas composições cuja orquestração teve que ser alterada e cujos intérpretes as não puderam ensaiar suficientemente.

 

Após o Festival as gravações referidas foram postas à venda em discos com a marca DECCA:

PEP 1037 ("Eu vi minha mãe rezando" por Maria de Lourdes Resende; "Porta fechada" por António Calvário; "Um caso ao acaso" por João Maria Tudela; e "Quero ir ao Douro" por Gina Maria); e

PEP 1038 ("Dúvida" por António Calvário; "Poema ao amor" por Maria de Lurdes Resende; "Canção para matar saudades" por João Maria Tudela; e "Canção do Douro" por Gina Maria).

Estes são os primeiros discos portugueses do Festival de Aranda que conheço, já que nunca vi edições nacionais dos dois festivais anteriores- mas talvez existam.

   
 

Das canções portuguesas concorrentes ao 3º Festival de Aranda, a mais notável é porventura "Porta fechada" que teve sucesso em Portugal na voz de António Calvário. Em Aranda foi cantada por Artur Garcia e classificada em nono lugar. Tem a curiosidade de um dos seus versos ser dado alterado nas transcrições da época por ser considerado eventualmente escandaloso. A letra cantada é "Mas caem meus braços cansados da tua indiferença/ Vencidos pela voz dos teus olhos que dizem que não!/ Até que de novo se agitam/ Se elevam e excitam/ P'la tua presença/ E se esmagam na porta fechada do teu coração." Ora na transcrição dada em várias publicações aparece "(...)Até que de novo se agitam/ Se elevam e exultam/ P'la tua presença/ (etc...)" que nem rima e constitui um saboroso exemplo de auto-censura nas publicações da época.

Para concluir de uma maneira positiva direi que da história dos primeiros anos deste festival me ficou uma muito boa impressão do alcaide de Aranda, D.Luis Mateos Martin (à esquerda com Artur Ribeiro no I Festival), figura patriarcal e provável motor por detrás da iniciativa, que se dava pessoalmente ao trabalho (imagine-se!) de responder por escrito às críticas mais ou menos descabeçadas que às vezes se publicavam na imprensa portuguesa após os festivais.

   
João Manuel Mimoso, 31 de Dezembro de 2007
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  Fontes:
    -Rádio e Televisão
    -Álbum da Canção Nº1
   
  Autores das canções citadas:
    -O meu rio Douro (V.de Sousa, Santos Rosa, canta Maria Helena)- HISPAVOX HH 17-145
    -Canção ao Porto (Artur Ribeiro, J.Filipe, canta Maria Helena)- HH 17-145
    -Canção do Douro (Eurico Augusto Cebola, canta Gina Maria)- DECCA PEP 1038
    -Porta fechada (Álvaro Duarte Simões, canta António Calvário)- DECCA PEP 1037