OS REIS DO VINIL

(canção portuguesa de 1958 até 64)

Parte I- O 1º Festival da Canção Portuguesa (1958)

por João Manuel Mimoso

Outubro de 1957- a União Soviética coloca o Sputnik I em órbita enquanto a epidemia de gripe asiática se espalha inexoravelmente por toda a Europa. Em Portugal as escolas são temporariamente encerradas. De cama, tenho o novo gira-discos dos meus Pais por companhia...

Embora o mercado ainda fosse dominado pelos discos de 78 rotações, as chamadas "microgravações" (EPs em vinil de 45 rpm) vendiam-se já há vários anos. A oferta tinha sido recentemente incrementada pelo lançamento da marca "Alvorada" pela Rádio Triunfo do Porto que apenas editara até então discos de 78 rpm. O lançamento, em 1957, dos primeiros discos da Alvorada, com os códigos MEP 60XXX, capas banais e etiqueta azul ou negra com desenho reminiscente dos discos de 78 rpm (à esquerda MEP 60004), marca um ponto de viragem- durante os anos que se seguiriam seria a motora da divulgação da música ligeira nacional. Quase todos os cançonetistas portugueses gravariam para a Alvorada no início das suas carreiras.

   
 

A RTP começara as suas emissões regulares a partir de Lisboa e construíam-se nesta época os emissores da Lousã, que serviria a região de Coimbra, e do Porto. Nas suas primeiras emissões, ainda a partir da Feira Popular, actuaram dois dos cançonetistas mais consagrados da época: Maria de Lourdes Resende (de quem "Alcobaça" é uma canção de referência) e Tristão da Silva ("Se os meus olhos falassem"). Maria Clara ("Figueira da Foz"), cançonetista de grande relevo na época, declinou um convite idêntico.

Shegundo Galarza, o simpático pianista espanhol radicado em Portugal, animava em directo as noites da RTP tocando a solo ou acompanhando cançonetistas do momento como Lina Maria, Maria de Fátima ou Gina Esteves.

Tony de Matos e Francisco José ("Olhos castanhos") encontravam-se, nesta época, radicados no Brasil calcorreando penosamente uma carreira que ainda não se afirmara. Rui de Mascarenhas ("Encontro às Dez") é uma descoberta recente em ascensão. Uma miúda de 18 anos, nada sofisticada, cantava pela primeira vez na televisão. Uma revista chamou-lhe "a revelação do primeiro ano da RTP" e aconselhou os leitores a fixar-lhe o nome: Madalena Iglésias.

   
 

O fado, que antes da Guerra e na década que se lhe seguiu tinha sido o principal veículo da música ligeira portuguesa, tinha perdido terreno mas era ainda uma importante força no panorama nacional, representado por nomes como o da incontornável Amália Rodrigues, já então com um invejável currículo internacional e de quem se dizia que ocasionalmente visitava Portugal, ou Carlos Ramos ("Não venhas tarde"). Para a revista portuguesa o fado tinha assumido um novo avatar, o de "fado-canção" que se caracterizava por um acompanhamento orquestral, em que já se fazia notar a jovem Helena Tavares.

Uma bizarria desta época era o sucesso dos tenores, como Alberto Ribeiro, Luiz Piçarra, ou o próprio Artur Ribeiro na música ligeira. Esta tendência teve o seu exemplo mais curioso em Guilherme Kjölner (à esquerda, numa fotografia de 1957), que fazia a saison do S.Carlos e era, depois, solicitado como intérprete de música ligeira ao vivo. Foi assim que participou em diversos festivais da canção, em Portugal e no estrangeiro, neles defendendo- por vezes vitoriosamente- composições nacionais durante mais de uma década e dando-lhes sempre um inconfundível toque de classe.

 
 

Desconhecido de muitos, funcionava em Lisboa o Centro de Preparação de Artistas de Rádio, fundado por António Ferro há quase duas décadas, dirigido pelo professor e antigo cantor lírico Motta Pereira, e frequentado pelo que seria a geração de cançonetistas que dominariam o meio durante mais de uma década: Maria de Fátima, mais tarde conhecida como Maria de Fátima Bravo, Simone de Oliveira, Madalena Iglésias, Alice Amaro, Artur Garcia e Maria Marize, entre outros.

O Centro recrutava candidatos através de anúncios na Emissora Nacional, de que dependia, aceitando como alunos os mais promissores. Todas as semanas a Emissora emitia um programa de gente nova ao microfone em que os alunos da escola davam os primeiros passos das suas carreiras. Mais tarde estrear-se-iam integrando os elencos de uma emissão ao vivo, quando fossem julgados suficientemente preparados. Mas nesta época o professor (à esquerda com Simone de Oliveira em Janeiro de 1958) queria dar uma demonstração pública da qualidade dos artistas que se geravam no centro de formação que desde o início dirigira.

     
 

Desde o tempo de António Ferro que a Emissora Nacional organizava aperiodicamente festivais de música portuguesa, chamados "Festivais Nacionais da Rádio". O último destes "festivais" tivera lugar no Porto, na Primavera de 1957. Na verdade tratava-se de programas de variedades radiofónicas, produzidos e transmitidos pela Emissora, sem qualquer intuito de competição entre compositores ou artistas.

No dia 14 de Janeiro de 1958 o Diário de Notícias publicou o anúncio da próxima realização no Cinema Império do "I Festival da Canção Portuguesa" "para a 1ª audição das últimas criações" de vários compositores "cantadas por Artur Ribeiro, Domingos Marques, Guilherme Kjölner, ...". "No início do espectáculo será apresentada pela primeira vez ao público a cançonetista Simone de Oliveira"... "a venda de bilhetes inicia-se hoje". Num anúncio semelhante aparecido a 19 informava-se "O Festival será gravado por várias casas nacionais da especialidade e pela Ducretet-Thompson, cujos técnicos virão expressamente de Paris- Bilhetes à venda- Esgotada a lotação do 2º Balcão".

   
 

O espectáculo realizou-se na noite do dia 21 de Janeiro e os jornais do dia seguinte noticiavam o sucesso do espectáculo em que sucessivamente Rui de Mascarenhas cantara "Serenins de Queluz", Maria Amélia Canossa "Tudo é Portugal", Domingos Marques "Agora nunca mais", Isabel Wolmar "Viela", Artur Ribeiro "Sol do Alentejo", Maria de Fátima Bravo "Desencanto", Júlio Guimarães "Maria do Céu", Tristão da Silva "Senhora da Nazaré", Maria José Valério "A folha da hera", José António "Como se fazem canções", novamente Maria de Fátima Bravo "Vocês sabem lá...", Guilherme Kjölner "Duas caras" e Maria de Lourdes Resende "Lisboa feliz".

O Festival não era, realmente, uma competição (todos os autores receberam medalhas comemorativas) mas se o fosse a triunfadora teria sido Maria de Fátima Bravo e "Vocês sabem lá..." (à esquerda, fotografada durante a interpretação), que o público aclamara, exigindo a repetição da canção que se tornou um dos temas de referência da música portuguesa.

   
 

Fora do concurso que na realidade não o era, a estreante Simone de Oliveira agradou cantando o tema popular "O burrinho", "Adeus" do maestro Raul Ferrão e "Os três santos populares".

Não faço ideia se os técnicos da Ducretet-Thompson vieram, ou ficaram em Paris, nem se das tais gravações feitas ao vivo resultou algum disco, mas creio que não. A generalidade das canções era de fraco interesse, no entanto muitas acabaram gravadas em estúdio. Por exemplo, Maria de Lourdes Resende gravou "Lisboa Feliz" (Alvorada MEP 60105, à esquerda), Maria Amélia Canossa gravou "Tudo é Portugal", Maria José Valério gravou "A folha da hera" e até Simone de Oliveira gravou "O burrinho" (Alvorada MEP 60103). No entanto a única gravação realmente relevante para a história da canção portuguesa desta época é "Vocês sabem lá..." (P-DFE 6489 da Decca) que tem o interesse adicional de ser o primeiro disco de Maria de Fátima Bravo e ainda estava no "top" das preferências em Fevereiro de 1959, quando o Festival foi repetido no Coliseu do Porto, e continuou no " top" até 1960.

   
 

Nos meses seguintes o centro de preparação de Motta Pereira teve o reconhecimento que o professor desejara, tendo sido publicados artigos e entrevistas na generalidade dos jornais e revistas, saudando o seu trabalho e a valia dos seus formandos.

Em 1958, o ano seguinte à edição dos primeiros discos da Alvorada (que, significativamente, reflectiam a sua época sendo dedicados a Amália Rodrigues e ao fado de Coimbra) ocorreu uma revolução no campo da música ligeira portuguesa com a apresentação ou afirmação, através da rádio, da televisão e do disco, dos artistas que iriam dominar o meio na próxima década: Madalena Iglésias, Simone de Oliveira e António Calvário (este último foi o único dos três que não veio do Centro de Preparação de Artistas e talvez por isso só seria verdadeiramente consagrado com o II Festival da Canção Portuguesa, como veremos a seu tempo). Chamados "a nova vaga", foram aceites, reconhecidos e posteriormente idolatrados por uma nova classe de compradores dos vinis pequenos e baratos, tocados em gira-discos portáteis e acessíveis. O 1º Festival da Canção Portuguesa simboliza este período e pode, convenientemente, ser considerado como o início do que um dia se chamaria, maldosamente, "nacional-cançonetismo", um género caracterizado pela convencionalidade musical e pelas letras inconsequentes que "Vocês sabem lá..." bem exemplifica. Na verdade foi a faciés portuguesa de um estilo que, com diferenças na qualidade dos seus melhores exemplos e variações de pormenor, também triunfou na generalidade dos países ocidentais. Mas por enquanto essa revolução ainda não era evidente e revistas como a Estúdio, a Flama e a Plateia ainda não tinham despertado para o novo mercado que os fanáticos das/dos várias/os cançonetistas iriam constituir.

 
 

Quanto a Maria de Fátima Bravo, a interpretação de "Vocês sabem lá..." mudou-lhe seguramente o curso à vida. Alta, bela, elegante e com um porte invejável, a jovem cançonetista mais parecia saída de uma qualquer festa da alta sociedade parisiense do que do acanhado meio nacional da época. Dotada de uma agradável voz ligeiramente grave, segura e timbrada, teria nos anos seguintes uma carreira que, ao nível nacional, se pode considerar fulgurante e que rapidamente se diversificou para o cinema. Aguardava-se uma carreira internacional, mas não havia de ser... Em 1961 casar-se-ia, abandonando um percurso de que muito se podia esperar.

Mas por enquanto, em 1958, a gripe asiática continuava a grassar pelo País e a União Soviética a lançar sputniks para o Espaço.

 
João Manuel Mimoso, 21 de Dezembro de 2007

NOTA: recomendo um estudo biográfico fascinante sobre Nóbrega e Sousa (o autor da música de Vocês sabem lá e da de muitos outros êxitos posteriores) que acaba de ser publicado por Nuno Gonçalo da Paula e pode ser adquirido directamente ao autor por um preço simbólico. Contactar:

nuno.gdapaula@gmail.com

 
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Fontes:
  -jornal Diário de Notícias
  -revista TV Magazine
  -revista Rádio e Televisão
Gravações reproduzidas:
    -Lisboa feliz (Manuel Paião, Eduardo Damas)- ALVORADA MEP 60105
    -Vocês sabem lá... (Jerónimo Bragança; Nóbrega e Sousa)- DECCA P-DFE 6489
    -Se os meus olhos falassem (Jerónimo Bragança; Nóbrega e Sousa)- Tristão no Rio de Janeiro; PARLOPHONE LMEP 1069
    -Encontro às 10 (Jerónimo Bragança; Nóbrega e Sousa)- DECCA PEP 1029
    -Alcobaça (Belo Marques; Silva Tavares)- ALVORADA MEP 60807
    -Olhos castanhos (Alves Coelho Filho)- PHILIPS 425 600 PE