Antes do 25 de Abril, todos tinham uma noção do que se podia ou não se podia dizer ou fazer, e os limites da actuação de cada um eram uma opção entre viver calmamente uma vida apagada, ou brincar com o fogo (a perspectiva de uma "entrevista" com a temida polícia política, ou mesmo um termo de prisão com todas as consequências que dele poderiam advir...). Além da severa limitação das liberdades políticas havia também uma outra ao comportamento licencioso, em geral, e às publicações que abordassem temas conexos sob um ponto de vista que não fosse científico ou condenatório do que, na época, era considerado "imoral".

Mas havia uma zona cinzenta entre o branco e o negro, e era nessa zona em que as regras não estavam totalmente esclarecidas que se moviam aqueles que tinham coragem para se aproximar do fogo, arriscando uma queimadura... E dessa ousadia recolhiam o merecido fruto.

A Censura visava todas as publicações periódicas. Os livros não eram sujeitos a censura prévia, sendo publicados por conta e risco da editora, de onde o facto de Vilhena só começar a publicar uma revista verdadeiramente sua (a Gaiola Aberta) após o 25 de Abril, caso contrário arriscar-se-ia a que nenhum número fosse autorizado a sair.

 

Por volta de 1958 Vilhena começou a "pisar o risco", primeiro cautelosamente, depois com ousadia e, finalmente, de maneira despudorada. 

O primeiro indício foi, provavelmente, a maneira como na revista "O Mundo Ri" indicava, por desenhos da sua autoria, ter aquela publicação sido visada pela Censura. O exemplo ao lado é de 1958.

Para a capa do número de Maio de 1962 da mesma revista, Vilhena desenhou um  dos mais brilhantes cartoons de sátira política da sua carreira: um membro do governo expondo, ao microfone da Emissora Nacional, a situação económica do País enquanto as suas palavras desenham uma recta inexoravelmente descendente contra um fundo em papel milimétrico.

 

A verdadeira intenção do cartoon terá passado despercebida ao censor ou então só o interior terá sido censurado. Seja como for, a revista foi suspensa durante três meses. O número de Outubro incluía uma nota dizendo que só não pediam desculpa pelo atraso por ele ser alheio à vontade e possibilidades dos editores. Essa nota era cercada por um quadro negro contendo o texto "Visado pela Censura". A bom entendedor...

 
Os dois primeiros volumes da História Universal da Pulhice Humana constituiram soberbos meios para Vilhena desenvolver o seu estilo de "faz que não diz, mas diz mesmo". Misturando História Antiga (em que demonstrou uma fluência inesperada e a primeira prova de uma cultura confirmada em muitos dos seus escritos posteriores) com a actualidade portuguesa, quer transposta para a Antiguidade, quer utilizada como termo de comparação, Vilhena ridicularizou e atacou repetidamente o regime e alguns dos seus bastiões.Eis uma citação de "O Egipto" (1961), referindo-se aos Assírios: "O seu regime era de tal maneira sombrio, sinistro e policial, que vós, amados leitores, criados num paraíso de liberdades, não conseguiríeis sequer imaginar. Em Assur, em Ninive e na Babilónia reinavam o terror, o bastão, a denúncia, o boato político, a incerteza do dia de amanhã. A cada esquina postavam-se ferozes Pideteucos armados até aos dentes, espiando os menores ruidos e as mais inocentes vozes" (o sublinhado é meu).
 

No "Dicionário Cómico" de 1963, que coligiu e no qual algumas definições serão seguramente suas (senão, pelo menos, a escolha é-o!), vai batendo na mesma tecla. Eis alguns exemplos, tanto mais extraordinários quanto o facto de Vilhena ter estado detido pouco antes:
Assembleia Nacional- conjunto vocal; Censor- pessoa que tem por ofício separar a palha do grão para que seja publicada a palha; Ditador- se um homem se julga importante mas ninguém o leva a sério, acaba no hospital de doidos. Mas se esse mesmo homem souber rodear-se de uma boa polícia política...(ah, pobres de nós!...) é um ditador; etc...

Hoje, estes textos não têm actualidade mas na época eram sensacionais e, tal como se ia ao circo ver o domador de leões, assim também se compravam os livros de José Vilhena. Esse sucesso comercial que partilhava, por exemplo com as revistas populares do Parque Mayer (outro dos meios em que se brincava com a Censura e com a falta de liberdades) era o merecido fruto da ousadia a que me referi. Quando a Censura acabou e as liberdades foram restituídas, a Revista Popular perdeu a pimenta e não sobreviveu; Vilhena, por outro lado, soube adaptar-se e ainda hoje publica com sucesso.

 

José Vilhena foi preso em 1962, 1964 e 1966. Contou o próprio, em 1992, em entrevista à revista K: "As primeiras vezes que fui preso tive um medo terrível desses interrogatórios mas nunca cheguei a ser torturado. Até porque no meu caso não tinham nada que torturar, visto que eu não pertencia a partido político nenhum e eles só usavam esses métodos para saberem coisas. Ora tudo quanto eu fazia estava à vista. Eles votavam-me um desprezo total: prendiam-me e punham-me cá fora sem me dizerem sequer porque me tinham prendido, ou porque é que me tinham solto...".

Mas o mais extraordinário foi que, em vez de se "emendar", continuaria, não só a transgredir, mas até a fazê-lo de maneira cada vez mais descarada. Apresentam-se, como exemplos dos últimos anos do Antigo Regime, a capa de "A Grande Gaita" (publicada a 24 de Abril de 1974) e um texto introdutório ao livro "A Cama" (1971) num estilo de auto vitimização que é típico de Vilhena.

 
   

Acima: a Censura dirige-se à Imprensa agrilhoada: "Vê lá se tocas mais baixo, desgraçada, que me acordas o Zèzinho".

"Pode dizer-se, sem receio de exagerar, que a Cama e o Pincel vivem em comunhão de sentimentos desde que o mundo aprendeu a deitar-se e que, quase sempre, onde há uma cama logo aparece um pincel. Desgraçadamente, sabeis, porém, como venho sendo contrariado quando pretendo realizar-me artísticamente... Por tudo e por nada, a censura cai-me em cima, não me perdoando a mais ínfima liberalidade, encontrando o mal onde não havia senão inocência e atribuindo-me intenções equívocas que jamais afloraram ao meu espírito..." (A Cama).

   

 

Depois da Revolução, Vilhena descobriu que também incomodava o poder então vigente: após o número de Natal de 1974 a Gaiola Aberta foi suspensa durante 60 dias. No primeiro número após a suspensão (publicado em Fevereiro de 1975)  respondeu com uma correcção ao nome da revista: no cabeçalho lia-se, agora, "GAIOLA ABERTA (entreaberta)". 
 

 

Mas manteve-se fiel aos seus princípios: quando, alguns meses mais tarde, se pôs a questão de um governo de Vasco Gonçalves apoiado por um só partido, Vilhena comentou com o magnífico cartoon que se reproduz à esquerda.

O diálogo entre um diabo e Salazar é:

-Então, vais-nos deixar António?

- Como ouvi falar em partido único vou lá acima dar uma mão... 

         
 

Em relação a uma proposta de nova regulamentação dos meios informativos que, na prática, reintroduziria a censura respondeu Vilhena com um memorável editorial em que cinicamente aplaudia a medida e com um cartoon que mostrava o Comandante Correia Jesuíno a tentar desenterrar a Censura de uma campa. Também tomou posição quanto à solução do problema de Angola (à esquerda)... e tudo isto entre Agosto e Outubro de 1975, quando a situação política era incerta e a ideologia "segura" se mantinha indefinida!

                                         
                                         
Joćo Manuel Mimoso
                                         
                                         
Imagens reproduzidas com autorização de J.Vilhena. Lisboa, 2002-10-09.
                                         
                                         
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