OS REIS DO VINIL

(canção portuguesa de 1958 até 64)

 

Parte II- O 2º Festival da Canção Portuguesa (1960)

por João Manuel Mimoso

Junho de 1960- Festejavam-se os santos populares e tinha sido inaugurada a 1ª Feira Internacional de Lisboa nos pavilhões da Junqueira, enquanto se preparavam as comemorações do quinto centenário da morte do Infante D.Henrique...

A revista Flama, que então organizava a eleição das rainhas da rádio e da televisão, publicava o seguinte editorial indignado: "No Porto realizou-se recentemente o II Festival da Canção Portuguesa. Do que se passou na ampla sala do Coliseu pouco ou quase nada sabemos. A organização pecou em muitas coisas e até no necessário contacto que devia ter existido com a imprensa, principalmente com a da especialidade. Daí, como consequência lógica, a fraca projecção que este acontecimento artístico obteve. Assim, não nos é possível ir além de umas breves linhas de apreciação às causas do... fracasso. (...) Para nós não existiu o II Festival da Canção Portuguesa. Para nós foi foi uma realização para esquecer, bem como tudo o que se passou antes e depois."

E foi assim que o Festival passou quase despercebido em Lisboa onde os jornais só o noticiaram muito brevemente, a posteriori, e revistas como a Estúdio ou a Plateia nem se lhe referiram. Mas o Festival não foi um fracasso- com a sala esgotada, foi o primeiro festival da canção realizado em Portugal em que foi atribuída uma classificação formal a canções a concurso e, na minha opinião, foi, entre todos os que se lhe seguiram (incluindo os festivais da RTP e da Figueira da Foz) o festival em que se estreou um maior conjunto de canções de qualidade. Além disso foi através dele que António Calvário foi catapultado para o estrelato.

   
 

O II Festival teve lugar na noite de 31 de Maio de 1960, integrado nos festejos do "Maio Florido" dando continuidade aos espectáculos de música ligeira portuguesa que tinham sido organizados no enquadramento das mesmas festividades, quando António Ferro presidia à Emissora Nacional. Não havia, portanto, uma razão comum a este e ao 1º Festival ocorrido quase 30 meses antes, nem tampouco se sucederam com uma periodicidade pré-determinada. Das várias bizarrias que o caracterizaram conta-se a repetição, a 1 de Junho, no Teatro Circo de Braga...

O Festival foi dividido em três partes de que a primeira apresentou seis composições de novos autores; e as duas outras, dez composições de autores já consagrados. Outra bizarria era que apenas as seis composições de novos autores estavam em competição enquanto as restantes dez, apesar de originais, não estavam a concurso (nesta época, note-se, "original" queria dizer que ainda não tinham sido comercializadas sob a forma de disco)..

   
 

As canções apresentadas na primeira parte foram: Crucifixo (cantado por Maria Candal); Lisboa Enamorada (Maria do Espírito Santo); Ver e Amar (Maria Marize) 3º prémio; Canção do Pastor (Guilherme Kjölner) distinguida com o 1º prémio; Lisboa Moderna (Rogélia Paulo) 2º prémio; e Perdão (Madalena Iglésias).

Seguiram-se nas segunda e terceira partes: "O Estoril é você" (Isabel Wolmar); "Amar é sina" (Luis Piçarra); "Regresso" (António Calvário); "À porta da casa de Nosso Senhor" (Maria Teresa- Teresinha); "Nasci contra o vento" (Simone de Oliveira); "A mal ou a bem" (Madalena Iglésias); "Lisboa" (Artur Ribeiro); "Canção de embalar" (Maria de Lourdes Resende); "Val' do Vouga Verde" (José António); e "Olhos azuis" (Alice Amaro).

 

Um aspecto curioso ligado a este festival foi que a Rádio Triunfo fez saber que no dia seguinte poria à venda em Portugal discos com as canções do Festival, entendendo-se que os tais discos incluíriam todas as canções apresentadas. Realmente, no dia seguinte foram postos à venda quatro discos Alvorada com as dezasseis canções do Festival. Os discos foram os:

MEP 60283- ilustrado à esquerda- ("A mal ou a bem" por Madalena Iglésias; "Amar é sina" por Luiz Piçarra; "À porta da casa de Nosso Senhor" por Teresinha; e "Val' do Vouga Verde" por José António);

MEP 60284- o melhor do conjunto- ("Regresso" por Júlio Guimarães; "Olhos azuis" por Alice Amaro; "Lisboa" por Artur Ribeiro; e "Nasci contra o vento" por Simone de Oliveira);

   
 

MEP 60291 ("Canção de embalar" por Lina Maria; "O Estoril é você" por Isabel Wolmar; "Lisboa Moderna" por Rogélia Paulo; e "Canção do Pastor" por Guilherme Kjölner); e

MEP 60292 incluindo "Ver e amar" (Maria Marize); "Perdão" (Madalena Iglésias); "Crucifixo" e "Lisboa enamorada".

Estranhamente, todas as capas se baseiam numa imagem do conjunto arquitectónico do Buçaco que nada tem a ver com o Festival, ficando a dúvida se alguma vez terá havido a intenção de realizar o espectáculo também em Coimbra- os discos da Alvorada foram prensados com várias semanas de antecedência, como prova o facto de também terem sido postos à venda em Luanda logo após o Festival.

Existem variações nas capas dos discos dentro de um mesmo código de referência, o que comprova a existência de várias edições espaçadas no tempo.

   
 

A Voz do Dono, por outro lado, editou o disco 7LEM 3056 "II Festival da Canção Portuguesa" com "Canção de Embalar" por Maria de Lourdes Resende; "Regresso" por António Calvário; "Nasci contra o vento" pelo Trio Odemira; e "Amar é sina" de novo por Maria de Lourdes Resende.

O 7LEM 3056 (à esquerda) é importante por ser a primeira gravação de "Regresso" por António Calvário. A canção foi uma das mais notadas no Festival e viria a ser o primeiro grande sucesso do cançonetista, dando um impulso considerável à sua carreira. Tenho lido resenhas biográficas, tanto de António Calvário, como de Simone de Oliveira, que os dão como vencedores do 2º Festival da Canção Portuguesa com "Regresso" e "Nasci contra o vento", respectivamente. Essas afirmações não são exactas e não encontrei qualquer referência contemporânea que as justifique. Há, sim, opiniões de que uma ou outra foi a canção que mais agradou mas trata-se de apreciações meramente pessoais, eventualmente baseadas na duração dos aplausos que era um critério muito utilizado na época.

   
 

Este estranho festival, ainda organizado por Motta Pereira, que não foi devidamente anunciado e, em consequência, foi votado ao desprezo por muitos órgãos da imprensa foi, no entanto, importante por diversas razões. Além de, como já se disse, ter sido o primeiro concurso de canções pro forma realizado em Portugal, introduziu três excelentes canções e impulsionou as carreiras de dois grandes cançonetistas que serão de capital importância, nos anos seguintes, no panorama nacional. As canções são: "Regresso", já individualizada, e que seria cantada por muitos intérpretes durante mais de uma década (e, em particular, pelos que, como Rui de Mascarenhas, faziam o circuito da emigração); "Olhos azuis" que foi "top" das preferências um ano mais tarde e terá seguramente dado um significativo impulso à carreira de Alice Amaro; e "Nasci contra o vento" que, além de Simone, foi gravada por António Calvário, entre outros.

Além destas também é de mencionar "Lisboa" que, muito cantada nas revistas do Parque Mayer, se tornou um dos hinos não-oficiais à cidade capital.

   
 

Não se conhece a causa da inexplicável displicência com a divulgação do Festival junto da imprensa especializada mas, como organizador, as recriminações poderão ter caído em Motta Pereira. O professor, talvez mais focalizado no público e no meio radiofónico, poderá ter desprezado o potencial interesse da imprensa. Mas nesta época o panorama era já muito diferente do de 1957, quando organizara o 1º Festival. Revistas como O Século Ilustrado, a Flama, o Estúdio e a Plateia dedicavam já mensalmente um número apreciável de páginas à canção nacional e ao disco, em parte incentivados pela popularização dos artistas através da televisão. O facto de terem ignorado o Festival foi um rude golpe para as editoras discográficas, em particular para a Alvorada que durante vários meses publicou anúncios fazendo-lhe referência.

Também deve ter sido criticada pelos autores e pelos próprios cançonetistas que perderam a hipótese de uma vasta publicidade gratuita. Talvez nisso estivesse a origem de uma entrevista dada alguns meses mais tarde à revista Rádio e Televisão, cripticamente encabeçada com a frase "Na denúncia de um falso profissionalismo artístico o Prof. Motta Pereira esclarece- sem as iniciativas da Emissora Nacional não existiriam cançonetistas no nosso País". Nessa entrevista informa ir partir para o Brasil para assumir um lugar de professor de música lírica.

Partiu, esteve ausente durante cerca de quatro meses ("em viagem de estudo pelo Brasil e Estados Unidos"- sic) e voltou afirmando ter ideias para um centro de formação revolucionário. Mas as peças já estavam na mesa: todos os cançonetistas que iriam dominar o meio artístico durante a década tinham já sido lançados. De seguida iam-se jogar as supremacias e com esse jogo incentivar as paixões e o interesse pelos artistas enquanto pessoas, mais do que pelos seus trabalhos. Também se ia definir o que era um festival e explorar o conceito até à exaustão... mas isso ainda estava para vir.

   
João Manuel Mimoso, 26 de Dezembro de 2007
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  Fontes:
    -O Comércio do Porto
    -Rádio e Televisão
    -O Século Ilustrado
    -Flama
  Autores das canções citadas:
    -Regresso (Maria Almira, Resende Dias)- A VOZ DO DONO 7LEM 3056
    -Lisboa (Ferrer Trindade; Artur Ribeiro); Olhos azuis (Manuel Paião; Eduardo Damas); Nasci contra o vento (Nóbrega e Sousa; António José)- ALVORADA MEP 60284
    -Canção do pastor (Arlindo de Carvalho)- ALVORADA MEP 60291