BARCO NEGRO ( David Mourão-Ferreira)
  Tema: Um pescador foi para o mar no seu barco negro e não voltou mas a amante recusa-se a acreditar que morreu
De manhã temendo que me achasses feia,
acordei tremendo deitada na areia,
mas logo os teus olhos disseram que não
e o sol penetrou no meu coração.

- o poema incia-se em retrospectiva, na praia, na manhã após a consumação do amor entre o casal.

Vi depois, numa rocha, uma cruz,
e o teu barco negro dançava na luz;
vi teu braço acenando, entre as velas já soltas.
Dizem as velhas da praia que não voltas...
São loucas! São loucas!

- "vi depois numa rocha uma cruz..."- a cruz é um prenúncio de morte; o pescador não voltou mas a amante pensa vê-lo no reflexo cegante do sol no mar. E recusa-se a acreditar na evidência que apontam as viúvas da praia...

Eu sei, meu amor,
que nem chegaste a partir,
pois tudo em meu redor
me diz que estás sempre comigo.

- "eu sei que nem chegaste a partir..."- a mulher sabe, agora, que o amante não voltará mas diz a si mesma que tudo está igual porque ele está com ela, como sempre esteve.

No vento que lança
areia nos vidros,
na água que canta,
no fogo mortiço,
no calor do leito,
nos bancos vazios,
dentro do meu peito
estás sempre comigo.

- o vento, a areia, a água, o fogo... todos os elementos da natureza lhe lembram o amante perdido porque ele vive dentro dela.

Ouvir: ao contrário de outros poemas que precedem a música, o Barco Negro foi escrito em 1954 para uma música já existente do brasileiro Caco Velho. Também por isto o poema é extraordinário. A música foi arranjada nessa ocasião e cantada por Amália Rodrigues no filme francês "Les Amants du Tage" rodado em Lisboa. O tema não tem relação com o filme- Amália faz o papel de amiga dos protagonistas e canta Barco Negro num espectáculo de night-club. Podem ouvir aqui uma interpretação de Amália Rodrigues datando dos anos 50 ou 60.

http://www.youtube.com/watch?v=GdJYzzyO7nc

Nesta gravação (e noutras da mesma artista) Amália parece pronunciar "De manhã com medo que me achasses feia" em vez de "de manhã temendo que me achasses feia". Esta interpretação foi transcrita "De manhã que medo que me achasses feia" (o que seria mau português e está fora afastado do estilo formal do resto do poema) mas é comum ouvir intérpretes mais recentes cantarem distintamente "De manhã que medo que, etc..." como esta:

http://www.youtube.com/watch?v=XuWiEKorbaM

Marisa, por outro lado, numa interpretação muito diferente da de Amália Rodrigues, pronuncia claramente "De manhã temendo que , etc...":

http://www.youtube.com/watch?v=5ElLSBx9Jo8

Barco Negro foi também cantado por muitos outros intérpretes. Eis aqui uma jovem desconhecida que vale bem a pena ouvir (apesar do "acordei que medo"): http://www.youtube.com/watch?v=4QpU7ZbAFOk

   
João Manuel Mimoso
 
Lisboa, Portugal, 2007-06-20.