Passos da Cruz (VI )
 
   
por Fernando Pessoa
    Nota: antes dos comentários leia integralmente o soneto!
   

Venho de longe e trago no perfil,

Em forma nevoenta e afastada,

O perfil de outro ser que desagrada,

Ao meu actual recorte humano e vil.

trago no perfil (…) outro perfil que desagrada ao meu actual recorte humano e vil - tenho memória de outra personalidade muito diferente do meu eu actual (vil= "humilde", mas também "degradante"). Presumivelmente trata-se da memória de uma infância muito mais ingénua e pura.
     
   

Outrora fui talvez, não Boabdil,

Mas o seu mero último olhar, da estrada

Dado ao deixado vulto de Granada,

Recorte frio sob o unido anil…

Boabdil - latinização do nome do último rei de Granada, Abu 'Abd Allah. Cercado pelo exército dos Reis Católicos, entregou a cidade em Janeiro de 1492, seguindo para o exílio. Segundo a lenda, virou-se uma última vez na estrada para olhar Granada (no local hoje chamado "Suspiro do Mouro") e chorou; a imagem, portanto, é de quem olha para trás e lamenta o que perdeu;

anil - azul claro de um céu de Inverno.

     
   

Hoje sou a saudade imperial

Do que já na distância de mim vi…

Eu próprio sou aquilo que perdi…

 

E nesta estrada para Desigual

Florem em esguia glória marginal

Os girassóis do império que morri…

 

Hoje sou a saudade imperial do que já na distância de mim vi; eu próprio sou aquilo que perdi - o "outro perfil" que coexiste no Poeta materializa-se na saudade avassaladora (= imperial) por algo antigo, presumivelmente a sua infância, que ele só apreciou realmente depois de perder (já na distância de mim vi) mas que subsiste na sua memória (sou aquilo que perdi);

estrada para Desigual - caminho para Diferente, para o Futuro;

Florem em esguia glória marginal os girassóis do império que morri - floresce, alta, ladeando o meu caminho (a minha memória), a lembrança do que foi (e vive em mim como saudade). Que bela frase!!!

     
João Manuel Mimoso
   
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Lisboa, Portugal 2007-07-11